O Funeral do Conde de Orgaz - El Greco

segunda-feira, 16 de abril de 2007

O domínio possível do tempo: aumento na complexidade das sínteses elaboradas pelo homem

À partir da fotografia, o texto abaixo, chega rapidamente nas concepções de Norbert Elias acerca do tempo:

Qualquer fotografia, tanto aquela considerada como a primeira, feita por Niépce, datada de 1826-1827, ou os mais novos frutos da tecnologia digital, depende de umtempo de exposição”. Além disso, o tempo durante o qual a imagem vai se tornando visível no processo de revelação (no caso da fotografia não digital, fotoquímica) também deve ser levado em conta. Na fase seguinte do processo de revelação, o escurecimento dos sais de prata é interrompido por água ou por alguns compostos ácidos chamados interruptores. E tal procedimento deve ser levado a cabo em tempo para que a imagem não fique demasiado escura, até que desapareça na uniformidade de uma superfície preta. Mas a foto somente poderá ter o seutempo de escurecimento” definitivamente interrompido quando o hipossulfito de sódio retira os “grãos” de cristais de sais halogêneos de prata[1] que não foram expostos à luz. Estes, por sua vez, devem deixar livre o espaço que ocupavam, que vem a ficar branco no caso do papel fotográfico e transparente no do acetato. Com estes dados, é possível ver que a fotografia está impregnada de procedimentos bastante desenvolvidos e complexos, relativos à lida com o tempo.

O percurso de longa duração, através do qual o homem foi elaborando sínteses cada vez mais complexas para a lida com o tempo, é tratado por Norbert Elias como umprocesso simbólico” (1998): uma construção que se dá coletivamente e a longo prazo. Num processo simbólico, é possível verificar um aumento no grau de complexidade das sínteses. Elias prefere falar de sínteses, e não de abstrações, quando trata do processo simbólico formador do instrumental usado na lida com o tempo: relógios, calendários, conceitos de eras etc. Para compreender o que seria talaumento do grau de complexidade das sínteses” será necessária uma rápida incursão em Sobre o tempo, uma das obras onde Elias trabalha mais detidamente com o conceito de processo simbólico.

Elias apresenta, em Sobre o tempo, sua tese na qual tempo não é concebido nem como um fenômeno natural, externo ao homem, como colocava Newton, nem como uma faculdade a priori, a partir da qual o homem elabora juízos, tal como figura no pensamento de Kant. O tempo é, para Elias, um processo simbólico: o homem, coletivamente e a longo prazo, elaborou instrumental que foi determinando um aumento considerável no grau de complexidade das sínteses que o constituem.

A partir de dados empíricos e fontes diversas - incluindo a literatura -, Elias constrói os argumentos de sua tese: o homem tem, como faculdades inatas, não o tempo e o espaço, como colocava Kant, mas sim a capacidade de elaborar sínteses e de torná-las cada vez mais complexas; ao menos no que se refere à construção do complexo instrumental usado na lida com o tempo.

O que seriam, então, finalmente, estas sínteses para a lida com o tempo? É quando esta parte da teoria de Elias é exposta que o seu conceito de processo simbólico fica mais acessível à compreensão. Elias nos mostra como o homem vem usando processos de síntese para tratar eventos sucessivos como simultâneos. Por meio de um quadro de referênciacomo por exemplo um relógio − é possível sintetizar dois eventos sucessivos (medir a queda de dois corpos) e ter deles uma perspectiva, construída, de simultaneidade. Em Sobre o tempo, Elias se refere constantemente a “[...] esse poder humano de síntese, essa capacidade de apreender na unidade de um mesmo olhar aquilo que se produziu ou se produzirá noutros momentos” (ELIAS, 1998, p. 62), e nele fundamenta seu estudo sobre o tempo.

Dentro da complexidade do texto de Elias, com o objetivo de exemplificar e melhor demonstrar o que são as referidas sínteses, por meio das quais o homem vem construindo seu instrumental para a lida com o tempo, escolhi um momento do capítulo 7 no qual Elias fala da sensível mudança introduzida nas sociedades humanas a partir do momento em que estas sentem a necessidade de produzir seus próprios alimentos. Antes de sentir esta necessidade, houve “[...] etapas na evolução das sociedades em que os homens não encontram problemas que exijam uma sincronização ativa das ocupações de seu grupo com outras mudanças em andamento no universo.” (1998, p. 42). Não havia, nessas etapas do desenvolvimento do instrumental de lida com o tempo, preocupações inerentes à agricultura, tais como a capacidade de determinar o momento adequado para o plantio -ocupações do grupo-, de tal forma que este coincidisse com o momento da chuva - “outras mudanças em andamento no universo”.

Acontece então, no momento em que se estabelece este tipo de relação entre as atividades do grupo e eventos naturais, o que Elias considera como sendo uma passagem para uma fase em que ocorre uma determinação ativa do tempo, antes passiva. O advento da agricultura é um exemplo privilegiado de tal mudança, na acepção de Elias:

Os problemas ligados a uma determinação ativa do tempo, e não mais passiva, adquirem então uma importância maior, o mesmo acontecendo, na esteira deles, com aqueles que estão implícitos num controle social e pessoal de caráter ativo, pois os homens, através de seu domínio e sua exploração do mundo vegetal, são submetidos a uma disciplina anteriormente desconhecida - a que lhes é imposta pelas exigências da agricultura, da qual seu alimento passa então a depender. (ELIAS, 1998, p. 42).

Recorrendo a relatos de um trabalho que trata de uma pequena etnia africana, publicado em 1929, Abangbe History, de N.A.A. Azur[2], Elias traz um exemplo dos primórdios da determinação ativa do tempo. Um sacerdote de uma região montanhosa, todas as manhãs, observava o nascimento do sol a partir de um determinado local. Quando o sol nascia atrás de uma certa montanha de topo achatado, o plantio deveria então ser feito na primeira chuva daquela mesma semana. Como um cronômetro, que é usado paramedir” o tempo de queda sucessiva de dois corpos e, desta forma, servir de quadro de referência para a síntese destes dois eventos, o nascimento do sol atrás da montanha era o quadro de referência que indicava ao sacerdote como fazer coincidir as condições favoráveis da natureza ao plantio com o trabalho dos lavradores. Eventos sucessivos são tratados como simultâneos, por via do uso de um quadro de referência. Essas operações é que, na opinião de Elias, são levadas a cabo por meio da capacidade humana de realizar sínteses e, também, de torná-las cada vez mais complexas; é o que Elias chama, em Sobre o tempo, de processo simbólico.

um aspecto do pensamento de Elias que pede uma atenção especial. Para considerar a capacidade do homem de tornar cada vez mais complexas as sínteses, usadas no instrumental para a lida com o tempo, as teses de Elias lançam mão do conceito de evolução. Termos como evolução, no atual cenário teórico, para serem usados pedem maiores especificações e esclarecimentos. Elias utiliza o termodesenvolvimentoem O processo civilizador, publicado pela primeira vez em 1939. em Sobre o tempo, publicado em 1974/75, com uma introdução incluída em 1984, Elias fala da necessidade de se levar em conta a “evolução” do conceito de tempo:

Quer falemos do desenvolvimento da instituição social da cronologia, quer da evolução das sociedades em geral, o conceito de “evolução” é comumente posto no mesmo saco com o antigo ideal de “progresso” da época das Luzes. Parece implicar a idéia de que cada estágio posterior comporta um valor moral mais elevado que os precedentes, ou representa um passo em direção a uma felicidade maior. É comum não se estabelecer uma distinção clara entre essa representação ideal do progresso e uma abordagem sociológica evolucionista que tome por regra a simples evidência dos fatos, quer ela ateste um progresso ou um retrocesso, por exemplo, na ordem da definição. (ELIAS, 1998, p. 75).

Um fenômeno que Elias aponta como uma perda acontecida no processo evolutivo é o hermetismo de certos grupos intelectuais. Nesses meios, na opinião de Elias, acontece uma espécie de retorno do feitiço contra o feiticeiro. A incompreensão dos processos de longa duração, no decorrer dos quais determinados conceitos vão sendo formados, acaba por levar os participantes destes grupos a transformarem em forma de comunicação uma operação deste mesmo processo; para Elias, estes homens acabam por “[...] designarem a si mesmos como abstrações elevadas” (1998, p. 142). Neste envolvimento excessivo e inconsciente, representações simbólicas de “[...] detalhes sensíveis com que todas estas abstrações elevadas se relacionam” (1998, p. 142) acabam por perder sua complexidade de sínteses de alto nível, atuando, no final das contas, como palavras sem maiores conotações e funções sociais.

Este é um dos riscos que se corre quando se vive em sociedades em que é grande o uso de símbolos resultantes de sínteses mais desenvolvidas e complexas. Elias fala então de perdas e ganhos nos processos evolutivos, escolhendo como exemplo-chave de perda de instrumental eficiente por parte das sociedades contemporâneas o caso do desuso dos provérbios. Para Elias, os membros das sociedades antigas faziam uso dos provérbios, em seu dia a dia, como instrumentos de comunicação, da mesma forma que “os membros das sociedades mais recentes utilizam símbolos que representam um alto nível de síntese, os quais eles denominam ‘abstraçõesougeneralizações’” (1998, p. 143).

O que Elias concebe como evolução são fenômenos observáveis quando “transformações gerais” de determinadas sociedades “[...] ocorrem em longos períodos de tempo e em determinada direção”, de forma a que algumas de suas experiênciascomo as relativas à lida com o tempo ou aquelas que tratam de transformar a coerção social em autocontrole − chegam a cristalizarsob a forma de conceitos reguladores que exijam um nível de abstração, ou melhor, de síntese, relativamente elevadoconceitos como mês, ano, natureza, ou, justamente, ‘tempo’” (1998, p. 44).

A evolução é observável em circunstâncias citadas, tais como nas mudanças de uma relação passiva a uma mais ativa com o tempo, assim como em casos onde é possível ver que relações sociais mais pontuais e tópicas com o tempo dão lugar a experiências mais contínuas, o que sempre vem acompanhado de um aumento na complexidade do grau de abstração, ou, preferencialmente, para Elias, de síntese dos conceitos usados.

Tal como em O processo civilizador, em Sobre o tempo Elias está sempre articulando argumentos que colocam movimentos sociais mais amplos em intrínseca ligação com estruturas da personalidade:

A dupla progressão para unidades de integração social cada vez mais vastas e para cadeias de interdependência social cada vez mais longas acarretou, igualmente, estreitas relações com certas modificações que intervinham na ordem cognitiva, dentre elas a ascensão a níveis mais elevados de síntese conceitual. (1998, p. 142).

As interferências recíprocas entre os fenômenos sociais e naturais, nestes processos simbólicos, vão ficando cada vez mais fortes. Para Elias, a capacidade de lidar com “[...] distâncias maiores de tempo e espaço foi um componente indispensável do processo mediante o qual o saber humano reduziu seu conteúdo imaginário e aumentou sua congruência com o real” (1998, p. 142). Mas Elias comprova que sua concepção de evolução não se confunde com a de progresso quando, em seguida ao argumento acima citado, recorre à seguinte constatação para encerrar o parágrafo: “O domínio cognitivo através das ligações de distâncias maiores”, que foi um dos principais fatores que rumou o saber humano do imaginário ao real,

permitiu que os homens ampliassem constantemente seu controle sobre a natureza externa, assim reduzindo o nível de perigo a que estavam expostos, ainda que, vez por outra, tenha contribuído para aumentar o perigo que os homens representam uns para os outros. (1998, p. 142).

Logo acima foi dito que Elias prefere falar de aumento da complexidade das sínteses, e não de abstrações. Também foi visto que ele chega a colocar as sínteses na condição de capacidade inata do ser humano. Diferentemente, no presente trabalho foi feita uma opção pela consideração mais firme da possibilidade da existência de processos simbólicos que trabalhem com abstrações. Em Sobre o tempo, Elias não chega a negar a possibilidade das abstrações gerarem processos simbólicos. No momento em que mais se opõe a esta hipótese, ele apenas comenta que não consegue imaginar como se possa abstrair o tempo (1998, p. 138). Apesar disto, ele não se manifesta em relação à possibilidade da operação da abstração em outros processos simbólicos, que não os referentes à lida com o tempo. Mas em outro momento da obra afirma que “É possível, na verdade necessário, fazer uma distinção entre os conceitos, conforme os diferentes níveis de abstração ou síntese que eles impliquem” (1998, p. 75).

No estudo das formas de representação visual, uma hipótese se apresenta como um fato ocorrido ao longo da modernidade: os modos de lidar com o espaço parecem envolver cada vez mais complexidade nas abstrações, enquanto no trato com o tempo cada vez mais as sínteses vão aumentando seu grau de complexidade[3].

Na concepção de Elias, este aumento no grau de complexidade das sínteses ocorre com todo instrumental de lida com o tempo. As formas de representação visual podem ser consideradas como parte dos artefatos com os quais o processo simbólico do tempo se relaciona. É possível considerar o aumento na complexidade das sínteses como um fenômeno presente nas formas de representação visual da modernidade. Mas antes de verificar com mais proximidade tal hipótese, seria interessante perscrutar outra questão: um aumento no grau de complexidade das abstrações usadas na lida com o espaço acompanha e constitui o processo de formação da fotografia?



[1] Os grãos das fotografias são aglomerados de cristais formados por moléculas de sais halogêneos de prata. Estes últimos, por sua vez, resultam da reação entre a prata e elementos químicos halógenos − VII grupo da tabela periódica −, tais como o bromo, cloro etc. Também existem emulsões à base de sais de ouro e emulsões diversas, que não são formadas por sais de prata, mas todas elas constituem exceções no que se refere ao uso generalizado dos materiais sensíveis à luz.

[2] Nota de n. 4 de Sobre o tempo: "N.A.A. Azu, Adangbe History, Acra, 1929, p. 18" (ELIAS, 1998, p. 160).

[3] A perspectiva de Harvey na construção da expressão “compressão do espaço-tempo” também vai ao encontro do que aqui está sendo postulado. Na verdade, é mais justo dizer que precedeu em minhas especulações o que vai neste trabalho e, em certa instância, a ele deu origem. Para Harvey, o termo compressão significa, dentre outras coisas, que cada vez mais uma quantidade maior de espaço passa a ser percorrida em menos tempo. Logo, o espaço vai diminuindo sob o ponto de vista do que e de quem se desloca cada vez mais rápido. E como a velocidade aumenta constantemente em tal operação de compressão do tempo-espaço, o tempo cada vez fica mais curto, mais sintetizado.

2 comentários:

MARTHA THORMAN VON MADERS disse...

Seu blog é um dos melhores que já visitei, pena que acho de deixou ele, não faz mais postagens? meu blog é marthacorreaonline.blogspot.com

Gleyce Heitor disse...

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